
Quando eu andava em Direito tive um professor, catedrático eminente e de sabedoria enciclopédica, que gostava de impressionar os seus jovens alunos com palavras eruditas e algo obscuras, que acabavam por causar mais riso do que admiração. Uma dessas palavras era obnubilação. O mestre utilizava o termo – em vez de ofuscação, turvação ou outra – quando nos queria transmitir a ideia de um facto ou circunstância cuja compreensão era perturbada por uma espécie de nuvem artificial e enganadora.Voltei a lembrar-me da palavra obnubilação, aliás de origem médica, quando nos últimos dias ouvi os líderes do PS e do PSD digladiarem-se quanto ao mérito (PS) e o demérito (PSD) do acordo firmado na semana passada por António Costa, Pedro Sánchez e Emmanuel Macron sobre as chamadas interconexões ibéricas para a energia. Enquanto o primeiro-ministro e secretário-geral do PS qualificava o entendimento alcançado como um êxito para Portugal e falava, entusiasmado, de um corredor verde para o hidrogénio e “outros gases renováveis” (?), Paulo Rangel, vice-presidente do PSD, afirmava, sem rebuço, que se tratava de uma traição ao interesse nacional. Movidos pelo interesse partidário e a inerente luta pela preservação e a conquista do poder, nem um nem outro descreveram a realidade com verdade, justa apreciação dos factos e interesse pelo bem público. O que fizeram foi um exercício de obnubilação.
António Costa cantou vitória, quando obviamente foi forçado a ceder a Macron (e até a Sánchez), deixando cair o acordo de princípio alcançado em 2014 e que previa um corredor de interligação para o gás natural e a eletricidade através dos Pirenéus (o MidCat). Paulo Rangel, vice-presidente do PSD, defendeu a tese do embaraço nacional e do prato de lentilhas que constituiria o novo traçado do gasoduto entre Barcelona e Marselha (o BarMar). O seu objetivo é, naturalmente, destacar a importância do acordo de princípio que o governo do seu partido tinha conseguido arrancar à França em 2014, aliás em circunstâncias políticas e geoestratégicas muito diferentes das atuais.
Nenhuma destas posições triunfalistas resiste a uma análise objetiva. Comecemos pelo princípio. O Mercado Único Energético, uma ideia que tem décadas, ainda hoje é contestado e até sabotado pelo grandes protagonistas do setor. E a União Energética Europeia, que a guerra na Ucrânia tornou ainda mais urgente, por enquanto não passa de uma expressão bonita sem tradução prática que se veja.
A França tem os seus interesses nacionais bem definidos no domínio da eletricidade e a respetiva integração internacional está consolidada na organização regional Pentalateral Energy Forum, que abrange os países do Benelux, a Alemanha, a Áustria e a Suíça. As empresas francesas do setor não têm, e nunca tiveram, qualquer interesse em alargar as interligações elétricas com a Península Ibérica. O que menos querem é mais concorrência vinda do lado de cá dos Pirenéus.
Portugal é um protagonista menor num jogo de muito dinheiro em que a França e a Alemanha ditam as regras. Nestas circunstâncias, António Costa fez o que era possível. Escusava era de apresentar o acordo como uma vitória nacional histórica.
Mas Paulo Rangel, que conhece muito bem esta dura realidade, também fez o seu número ao clamar por traição ao interesse nacional. E qual é o interesse nacional primordial no domínio da energia? É a segurança do aprovisionamento. Depois do corte, há um ano, do gás proveniente da Argélia, Portugal ficou numa posição de extrema dependência da Nigéria, país do qual importamos hoje cerca de 50% do nosso consumo anual. Ainda por cima, estamos totalmente dependentes do GNL, isto é gás liquefeito, transportado por navio. Ora, o traçado do novo gasoduto BarMar (e CelZa, i.e., Celorico da Beira-Zamora) abre a Portugal a possibilidade de novas fontes de aprovisionamento, nomeadamente em África e no Mediterrâneo.
Claro, há o tempo que isso leva, o muito dinheiro que custa, as alternativas mais baratas que foram ignoradas e até as objeções ambientais que já se fizeram sentir. Mas, no essencial, temos um entendimento com a França e a Espanha num setor de importância estratégica para Portugal. Poderá perguntar-se: “E Sines?”. Sines é uma infraestrutura muito importante para o país, mas menor no conjunto dos oito terminais de gás ibéricos. Tem o seu lugar, mas algo modesto. “Vai ser o hub do hidrogénio”, replicarão. Vamos ver. Parece que há dinheiro (muito dinheiro) para essa solução em que alguns acreditam vislumbrar o futuro da base industrial do país. Receio que venhamos a sofrer mais uma desilusão. E outra conta calada para pagarmos.
Artigo original do DN. O autor é Advogado e Perito do Secretariado do Tratado da Carta da Energia